sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

TAREIA AO SOM DE FARID AL-ATRASH




Por detrás do silvo do cinto no ar e do som da fivela a bater-lhe na carne, Amar ouviu um gato no terraço mais acima, chamando «Renhau-nhau...», os gritos das crianças e um rádio tocando algures uma gravação antiga de Farid al Atrache. Sentiu o cheiro à tajine que a sua mãe estava a cozinhar lá em baixo no pátio: canela e cebolas. Os açoites continuaram. De repente sentiu que tinha de respirar; ainda não havia inspirado ar desde que fora atirado para cima do colchão. Suspirou profundamente e deu por si a vomitar. Levantou a cabeça, tentou mover-se, e a dor obrigou-o a baixá.la de novo. Mesmo assim o ritmo da tareia continuou, ele nem percebia se com menos ou mais intensidade. O seu rosto deslizou na porcaria que estava por baixo de si; por detrás das suas pálpebras, teve uma visão. Ia a correr pelo Boulevard Poëymiraud na Ville Nouvelle com uma espada na mão. Quando passava por cada loja, a placa de vidro da montra estilhaçava-se por sua própria vontade. As mulheres francesas gritavam; os homens ficavam paralisados. Aqui e ali ele atingia um homem, cortando-lhe a cabeça, e uma fonte de sangue brilhante esguichava para fora do pescoço truncado. Uma quente vaga de feroz deleite se elevava em si. De súbito percebeu que todas as mulheres estavam nuas. Com destras estocadas ascendentes da sua lâmina abriu-lhes os corpos; com estocadas descendentes retirou.lhes os seios. Nem uma deveria ficar intacta.

Paul Bowles, in A Casa da Aranha, trad. Jorge Pereirinha Pires, Quetzal Editores, Julho de 2014, pp. 40-41.